Acordo assustada. São 5:53 de uma manhã
fria. Pelo negrume do quarto, percebo que o sol ainda não nasceu, enquanto o
silêncio parece ferir meus ouvidos como a um grito estridente.
A memória mais linda que tenho de minha
infância era de acordar com o cheiro de café no ar, com o barulho dos passos de
minha mãe na cozinha e dos cães da vizinha latindo. A vida, naquele tempo, era
estranhamente boa e minha única preocupação era saber se demoraria muito a
chegada do Natal.
Ah o Natal! Como eram felizes esses
momentos... Íamos à casa de meus avós e nos empanturrávamos das coisas mais
gostosas do mundo, que na maioria das vezes resumia-se à macarronada,
acompanhada de um bom copo de guaraná. Lembro-me de sentar no chão da sala para
contar o número de bolas de natal, dependuradas na árvore diligentemente por
minha avó.
Mas infelizmente meu crescer trouxe alguns
dissabores e o maior deles é aquilo que
eu chamo de “perder-se nas sombras”. Desejando manter meu castelo de sonhos com
cheiro de café, travei duras batalhas com objetivo de me encaixar no mar negro
de expectativas do mundo, sucumbindo à necessidade de satisfazer à opinião dos
outros.
Foi nesse exato momento que entreguei minha
vida nas mãos de uma sombra sanguinária e quando dei por mim estava adulta, com
uma coleção incrível de sonhos despedaçados. Amores que nunca vivi; noites de
amor, que jamais tive; profissões que nunca exerci; faculdades que nunca
cursei.
Quantas vezes deixei esse medo me
encurralar no terreno perdido de minhas paranoias? Sim. É um medo. Uma sombra
muda representada por milhares de vozes desconhecidas em minha cabeça, sedentas
por encontrar minúsculos erros em meu caráter ou em minhas atitudes, para me
torturar. Assim, ansiosa para provar a meus torturadores o valor que eu nunca
enxerguei, tornei-me uma reles escrava, presa a esta sombra.
Mas não há nada ao meu redor. Nenhuma das
pessoas que amei está por perto. As vontades que desesperadamente tentei
agradar, nunca me estenderam mais que um sorriso, tal qual aquele que
franqueamos a estranhos conhecidos. Somente no terreno inóspito de minhas
crenças, acreditei que os teria para sempre, sem saber que para sempre existe
apenas em contos de fadas.
Hoje quando acordo é sempre assim.
Silêncio. Quando se vive em meio a uma família grande, como a que tive, cada
minuto de silêncio é uma dádiva. Hoje daria cada segundo mudo para ter o
colorido de minha infância de volta, com meus avós, meus pais, o cheiro de
café, os natais e aquele mundo pueril de sonhos felizes em que vivi.
Sei que felicidade também é uma sombra sem
rosto, criada e alimentada por centenas de máscaras perambulantes, prestes a
discursar sobre coisas ou caminhos que devemos tomar para ser socialmente
aceitáveis. Por isso acordamos todos os dias à mesma hora; vestimos roupas,
penteamos cabelos, falamos num determinado tom, nos relacionamos com
determinadas pessoas, sempre de um modo que socialmente é aceitável. Até mesmo
o amor está nessa nebulosa esfera do aceitável aos olhos do mundo.
Eu luto por derrubar minhas máscaras, mas
quanto mais retiro-as, mais camadas de hipocrisia brotam sob minha pele.
Percebo, então, como é efêmera essa vida e quão superficial eu fui, correndo
atrás de uma voz que não era minha, para satisfazer uma expectativa que não me
faria bem.
Tomo meu banho rotineiro; preparo-me para
sair. Respiro fundo meu ar de medo. Medo da continuidade que envelhece e
envilece todos os homens. Seria possível que eu tenha me tornado uma sombra
também? Não escuto respostas. Novamente aquele silêncio me afronta.
Fecho a porta desiludida. Não há chamadas
no celular, muito embora os amores de minha vida estejam por aí, espalhados por
todos os cantos do mundo. Levo comigo o início de mais um dia, arrastando por
todas as partes esse pequeno castelo mal assombrado construído por minhas
desilusões e pelas perdas que tive.
G. P. Silva Rumin
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