quarta-feira, 6 de março de 2019

SOMBRAS


Acordo assustada. São 5:53 de uma manhã fria. Pelo negrume do quarto, percebo que o sol ainda não nasceu, enquanto o silêncio parece ferir meus ouvidos como a um grito estridente.

A memória mais linda que tenho de minha infância era de acordar com o cheiro de café no ar, com o barulho dos passos de minha mãe na cozinha e dos cães da vizinha latindo. A vida, naquele tempo, era estranhamente boa e minha única preocupação era saber se demoraria muito a chegada do Natal.
Ah o Natal! Como eram felizes esses momentos... Íamos à casa de meus avós e nos empanturrávamos das coisas mais gostosas do mundo, que na maioria das vezes resumia-se à macarronada, acompanhada de um bom copo de guaraná. Lembro-me de sentar no chão da sala para contar o número de bolas de natal, dependuradas na árvore diligentemente por minha avó.
Mas infelizmente meu crescer trouxe alguns dissabores e o maior deles  é aquilo que eu chamo de “perder-se nas sombras”. Desejando manter meu castelo de sonhos com cheiro de café, travei duras batalhas com objetivo de me encaixar no mar negro de expectativas do mundo, sucumbindo à necessidade de satisfazer à opinião dos outros.
Foi nesse exato momento que entreguei minha vida nas mãos de uma sombra sanguinária e quando dei por mim estava adulta, com uma coleção incrível de sonhos despedaçados. Amores que nunca vivi; noites de amor, que jamais tive; profissões que nunca exerci; faculdades que nunca cursei.
Quantas vezes deixei esse medo me encurralar no terreno perdido de minhas paranoias? Sim. É um medo. Uma sombra muda representada por milhares de vozes desconhecidas em minha cabeça, sedentas por encontrar minúsculos erros em meu caráter ou em minhas atitudes, para me torturar. Assim, ansiosa para provar a meus torturadores o valor que eu nunca enxerguei, tornei-me uma reles escrava, presa a esta sombra.
Mas não há nada ao meu redor. Nenhuma das pessoas que amei está por perto. As vontades que desesperadamente tentei agradar, nunca me estenderam mais que um sorriso, tal qual aquele que franqueamos a estranhos conhecidos. Somente no terreno inóspito de minhas crenças, acreditei que os teria para sempre, sem saber que para sempre existe apenas em contos de fadas.
Hoje quando acordo é sempre assim. Silêncio. Quando se vive em meio a uma família grande, como a que tive, cada minuto de silêncio é uma dádiva. Hoje daria cada segundo mudo para ter o colorido de minha infância de volta, com meus avós, meus pais, o cheiro de café, os natais e aquele mundo pueril de sonhos felizes em que vivi.
Sei que felicidade também é uma sombra sem rosto, criada e alimentada por centenas de máscaras perambulantes, prestes a discursar sobre coisas ou caminhos que devemos tomar para ser socialmente aceitáveis. Por isso acordamos todos os dias à mesma hora; vestimos roupas, penteamos cabelos, falamos num determinado tom, nos relacionamos com determinadas pessoas, sempre de um modo que socialmente é aceitável. Até mesmo o amor está nessa nebulosa esfera do aceitável aos olhos do mundo.
Eu luto por derrubar minhas máscaras, mas quanto mais retiro-as, mais camadas de hipocrisia brotam sob minha pele. Percebo, então, como é efêmera essa vida e quão superficial eu fui, correndo atrás de uma voz que não era minha, para satisfazer uma expectativa que não me faria bem.
Tomo meu banho rotineiro; preparo-me para sair. Respiro fundo meu ar de medo. Medo da continuidade que envelhece e envilece todos os homens. Seria possível que eu tenha me tornado uma sombra também? Não escuto respostas. Novamente aquele silêncio me afronta.
Fecho a porta desiludida. Não há chamadas no celular, muito embora os amores de minha vida estejam por aí, espalhados por todos os cantos do mundo. Levo comigo o início de mais um dia, arrastando por todas as partes esse pequeno castelo mal assombrado construído por minhas desilusões e pelas perdas que tive.

G. P. Silva Rumin

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