Modernidade
líquida. Um termo cunhado nos estudos de Zygmunt Bauman para identificar a fase
social atual, caracterizada por sua fluidez e volatilidade, na medida em que os
pontos de referência que nos servem de parâmetros de conduta, socialmente
estabelecidos e generalizados, são repletos de incertezas e inconstâncias.
Fechei
a página sobre Bauman, aberta no meu smartphone, enquanto o sistema da empresa
travava pela milionésima vez. Respirei fundo. Mas respirar doía, tanto ou mais
que meu orgulho terrivelmente ferido.
“Duas facadas”, pensei amargurada. Eu
havia tomado duas facadas no dia anterior, em um assalto em plena luz do dia,
próximo a um mercado de grande circulação. Eu reagi, confesso. Instintivamente,
é claro. O homem, cuja lembrança tornou-se ao longo das horas um mero borrão em
minha mente, talvez tivesse dado voz de assalto várias vezes, antes de partir
para a agressão. Não me lembro. Sei apenas que uma espécie de proteção divina
olhou por mim naquele fatídico domingo. E agora, meu abdômen, inchado e
machucado, dificultava os movimentos da respiração.
Cheguei
cedo ao trabalho na segunda. Contei para meus chefes, afinal de contas, eu
teria que sair antes do expediente para enfrentar a famigerada burocracia
brasileira na busca por providenciar a segunda via de meus documentos. Quando o
sistema finalmente destravou, notei um email da diretoria. “Ótimo!”, resmunguei mentalmente, já
antevendo as incontáveis reuniões que aquele assunto exigiria para ser
resolvido. Incontinente, ainda que manquejante (o abdômen também doía para
caminhar!), desci até o primeiro andar, procurando a diretora para iniciarmos
as discussões.
Quando
ingressei no amplo andar, cerca de quase trezentas pessoas, entre advogados,
estagiários, pessoal da limpeza e curiosos de passagem, deitaram seus olhos,
com expressão de terror, sobre mim. A cada pisada, parecia que ia afundar sobre
aquele piso branco até ser engolida pelas entranhas da terra, tamanha vergonha
que senti. Sofregamente, levei a questão para diretoria e no caminho de volta,
uma conhecida abordou-me pelo corredor, sem papas alguma na língua.
_
Gi! _ ela gaguejou _ Comentaram comigo, logo pela manhã, que você sofreu um
assalto... que havia sido apunhalada por inúmeras vezes... que estava
hospitalizada!
_
Não Margarete... Sim, sofri um assalto... Sim tomei duas apunhaladas... Mas não
foi caso de internação! _ respondi chocada.
E
para meu maior choque, além de a vida exposta e comentada, uma “filha da puta”, porque, com perdão pelo
palavrão, somente filhas da puta agem assim, chegou-se próxima a mim e sem
qualquer cerimônia, tentou levantar minha camisa, enquanto sorria dizendo “Ai! Quero ver o machucado! Quero ver!”.
Ou seja! Você sofre uma violência; conta sua intimidade para duas pessoas
próximas, e quando menos espera, tudo está praticamente sendo televisionado com
requintes de crueldade, para trezentas pessoas que, desculpem a franqueza,
estavam mais interessadas com a novidade e todos os assuntos que poderiam
surgir dela, do que comigo mesma.
Ninguém
perguntou se eu estava bem ou se precisava de algo. Ninguém se preocupou com
meu estado de ânimo. Eu era a novidade próxima, que havia entrado para as
estatísticas de violência no país. E aquelas trezentas pessoas representavam,
diante de mim, a realidade mais nua e crua na sociedade moderna: a banalização
do sofrimento humano.
Jornais,
televisão, redes sociais, internet... Tudo se resume à violência... Ela é o
assunto principal... Ela é a menina dos olhos que distrai a opinião pública,
dando assuntos para serem discutidos nas horas das refeições, nas redes de
amigos, nas rodadas de chope... E, com isso, a violência, a dor, algo que
deveria repugnar os homens, ingressou em meio ao rio líquido, volátil e
inconstante da modernidade líquida... Afinal de contas, por que indignar-me com
o sofrimento deste ou daquele se, amanhã, a notícia é velha e ninguém mais se
recorda da dor?
Daqui
a dois meses, esse episódio lamentável de minha vida completará três anos.
Ninguém mais se recorda, somente eu. O assunto agora é outro. Comentam-se agora
sobre uma desastrosa manobra do exército brasileiro que, confundindo uma
família que trafegava com seu carro por uma via com assaltantes, simplesmente
descarregaram oitenta tiros de fuzil no carro, sem ao menos se certificarem de
quem eram seus ocupantes.
Oitenta
tiros, que disseram terem sido disparado por advertência. Oitenta tiros que
representam exatamente o que a liquidez da sociedade atual nos tornou: pessoas
que, a cada dia, aparentam importarem-se menos uns com os outros e,
principalmente, com as consequências de suas próprias atitudes. Chegamos então,
ao óbvio, a vida humana tornou-se nada... e o sofrimento, menos ainda.
G. P. Silva Rumin
Nenhum comentário:
Postar um comentário