domingo, 14 de abril de 2019

A VIDA LÍQUIDA


Modernidade líquida. Um termo cunhado nos estudos de Zygmunt Bauman para identificar a fase social atual, caracterizada por sua fluidez e volatilidade, na medida em que os pontos de referência que nos servem de parâmetros de conduta, socialmente estabelecidos e generalizados, são repletos de incertezas e inconstâncias.

Fechei a página sobre Bauman, aberta no meu smartphone, enquanto o sistema da empresa travava pela milionésima vez. Respirei fundo. Mas respirar doía, tanto ou mais que meu orgulho terrivelmente ferido.
Duas facadas”, pensei amargurada. Eu havia tomado duas facadas no dia anterior, em um assalto em plena luz do dia, próximo a um mercado de grande circulação. Eu reagi, confesso. Instintivamente, é claro. O homem, cuja lembrança tornou-se ao longo das horas um mero borrão em minha mente, talvez tivesse dado voz de assalto várias vezes, antes de partir para a agressão. Não me lembro. Sei apenas que uma espécie de proteção divina olhou por mim naquele fatídico domingo. E agora, meu abdômen, inchado e machucado, dificultava os movimentos da respiração.
Cheguei cedo ao trabalho na segunda. Contei para meus chefes, afinal de contas, eu teria que sair antes do expediente para enfrentar a famigerada burocracia brasileira na busca por providenciar a segunda via de meus documentos. Quando o sistema finalmente destravou, notei um email da diretoria. “Ótimo!”, resmunguei mentalmente, já antevendo as incontáveis reuniões que aquele assunto exigiria para ser resolvido. Incontinente, ainda que manquejante (o abdômen também doía para caminhar!), desci até o primeiro andar, procurando a diretora para iniciarmos as discussões.
Quando ingressei no amplo andar, cerca de quase trezentas pessoas, entre advogados, estagiários, pessoal da limpeza e curiosos de passagem, deitaram seus olhos, com expressão de terror, sobre mim. A cada pisada, parecia que ia afundar sobre aquele piso branco até ser engolida pelas entranhas da terra, tamanha vergonha que senti. Sofregamente, levei a questão para diretoria e no caminho de volta, uma conhecida abordou-me pelo corredor, sem papas alguma na língua.
_ Gi! _ ela gaguejou _ Comentaram comigo, logo pela manhã, que você sofreu um assalto... que havia sido apunhalada por inúmeras vezes... que estava hospitalizada!
_ Não Margarete... Sim, sofri um assalto... Sim tomei duas apunhaladas... Mas não foi caso de internação! _ respondi chocada.
E para meu maior choque, além de a vida exposta e comentada, uma “filha da puta”, porque, com perdão pelo palavrão, somente filhas da puta agem assim, chegou-se próxima a mim e sem qualquer cerimônia, tentou levantar minha camisa, enquanto sorria dizendo “Ai! Quero ver o machucado! Quero ver!”. Ou seja! Você sofre uma violência; conta sua intimidade para duas pessoas próximas, e quando menos espera, tudo está praticamente sendo televisionado com requintes de crueldade, para trezentas pessoas que, desculpem a franqueza, estavam mais interessadas com a novidade e todos os assuntos que poderiam surgir dela, do que comigo mesma.
Ninguém perguntou se eu estava bem ou se precisava de algo. Ninguém se preocupou com meu estado de ânimo. Eu era a novidade próxima, que havia entrado para as estatísticas de violência no país. E aquelas trezentas pessoas representavam, diante de mim, a realidade mais nua e crua na sociedade moderna: a banalização do sofrimento humano.
Jornais, televisão, redes sociais, internet... Tudo se resume à violência... Ela é o assunto principal... Ela é a menina dos olhos que distrai a opinião pública, dando assuntos para serem discutidos nas horas das refeições, nas redes de amigos, nas rodadas de chope... E, com isso, a violência, a dor, algo que deveria repugnar os homens, ingressou em meio ao rio líquido, volátil e inconstante da modernidade líquida... Afinal de contas, por que indignar-me com o sofrimento deste ou daquele se, amanhã, a notícia é velha e ninguém mais se recorda da dor?
Daqui a dois meses, esse episódio lamentável de minha vida completará três anos. Ninguém mais se recorda, somente eu. O assunto agora é outro. Comentam-se agora sobre uma desastrosa manobra do exército brasileiro que, confundindo uma família que trafegava com seu carro por uma via com assaltantes, simplesmente descarregaram oitenta tiros de fuzil no carro, sem ao menos se certificarem de quem eram seus ocupantes.
Oitenta tiros, que disseram terem sido disparado por advertência. Oitenta tiros que representam exatamente o que a liquidez da sociedade atual nos tornou: pessoas que, a cada dia, aparentam importarem-se menos uns com os outros e, principalmente, com as consequências de suas próprias atitudes. Chegamos então, ao óbvio, a vida humana tornou-se nada... e o sofrimento, menos ainda.

G. P. Silva Rumin

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