(Trecho do
Livro “Diário de Bitita” de Carolina Maria de Jesus)
Eu ficava horrorizada quando via as
mulheres abraçando os homens. Pensava:
“Por que será que as mulheres abraçam
os homens, e os homens ficam contentes com os carinhos das mulheres?”
O que preocupava a minha mãe era a
minha mentalidade. Se alguém perguntava:
_ A tua filha é louca?
Ela respondia:
_ A aparência é de louca. Mas não é.
Recordo quando minha mãe teve uma
menina. Nasceu morta e podre, com as carnes desligando-se dos ossos. As pessoas
que iam visita-la, saíam vomitando e comentando:
_ Eu nunca vi ninguém nascer assim.
Eles diziam que era sífilis. Ficava
pensando: “O que será sífilis? Quando será que hei de aprender tudo que há no
mundo?” Minha mãe dizia que trabalhou demasiadamente, lavando as colchas de
algodão, mistas com lã tecidas no tear. Quando molhadas pesavam setenta quilos.
Às vezes eu notava as agitações do
povo comprando tecidos para confeccionar vestidos para usar no dia de ano novo.
Por que será que todos falam e sorriem nesse dia? E esses dias eram comemorados
com bailes. Quem será que inventou o baile? Mas eu notava que o dia de ano novo
era um dia igual aos outros com suas misérias e angústias.
Depois do ano novo era o Carnaval.
Então o mundo era sempre assim? Todos os anos é a mesma coisa? Minha mãe disse
que não.
O único mês que eu sabia que existia
era o mês de maio. E os negros iam pedir esmolas. Saíam com uma bandeira com o
retrato de São Benedito. Quando chegavam nas casas dos ricos, as madames
introduziam a bandeira dentro dos quartos e salas suplicando ao santo que lhe
auxiliasse. Embora elas tivessem casas para morar e alugar, roupas bonitas,
comida em abundância, automóvel, banheiros com água quente para tomar banho
todos os dias. Vivendo com conforto, ainda pediam o auxílio dos santos. Puxa!
Será que os ricos não se contentam com o que têm? Para que esses desatinos para
ficar rico, se quando morre deixa tudo! Elas davam a esmola, mas faziam
inúmeros pedidos.
No dia da festa, o Américo de Sousa,
filho de rico, era alegre e jocoso. Para assustar os negros que dançavam a
congada pelas ruas, ele levantava às três da manhã e fazia cruzes de cinzas no
meio da ponte que ia para o largo do Rosário. Quando os negros que dançavam a
congada iam atravessar a ponte e viam as cruzes, ficavam com medo pensando que
era feitiço. O Ameriquinho, reunido com outros brancos, dava risadas.
Mas o José Santana, que era o galã da
festa e tinha um terno de congada, pulava por cima das cruzes de cinzas e era
aclamado como herói pelo povo. Depois que o Santana havia pulado por cima das
cruzes, o feitiço deveria ir para ele.
O que eu notava é que nas festas dos
negros os brancos não iam. Um dia apareceu um senhor que não tinha pernas.
Distribuiu uns convites convidando o povo para ir ouvi-lo tocar violão no cine
Recreio. Tocou a valsa “Saudades do Matão”. A valsa já era por demais
conhecida. Não foi um sucesso. Creio que estava aprendendo, porque não sabia
ajustar a melodia tocando e a música cantando. Ou era mentiroso.
Vaiaram o pobre homem!
_ Fora! Vai tocar lá na China!
Que gargalhada. Todos sorriam, menos
eu.
Porque a tristeza que notei no rosto
do artista revelava que deveria existir coisa funesta na sua vida. Seria o
complexo por não ter as pernas?
Tinha hora que eu tinha um medo do
mundo! Era quando ouvia os homens falarem nas dificuldades que há para um homem
encontrar trabalho. O mundo não é um paraíso para o homem. A guerra do Paraguai
foi trágica, os homens matavam-se com canhões e bombas dinamites.
Quando eu estava com os adultos,
ouvia-os falarem coisas que eu não compreendia. Quando estava com as crianças,
brincávamos de roda, contávamos as histórias de fadas. E da princesa que ia
dançar no inferno, porque era namorada do diabo.
O povo já estava afoito para as festas
juninas. E todos falavam em Santo Antônio, São João Batista e São Pedro.
Uma mulher havia mandado um rei cortar
a cabeça de São João Batista! Pensei: “As mulheres também mandam no mundo! Ah!
Então eu também vou mandar, só que não vou consentir que cortem as cabeças dos
homens. As mulheres brigam por causa de homens, gostam de beijá-los, choram
porque querem os homens e depois mandam cortar a cabeça de um homem”.
Como odiei a mulher que mandou cortar
a cabeça de São João Batista. Não dormi, pensando na dor que ele havia sentido.
Foi o rei Herodes quem mandou cortá-la. Puxa! Então os reis são poderosos.
Fiquei com medo dos reis, graças a Deus aqui no Brasil não temos rei. Um rei
não deve ser mau. Ele deve ser bom.
Ouvia falar que haviam crucificado Jesus
Cristo. Que Jesus Cristo também era um rei, mas mais poderoso que os outros
reis.
As crianças estavam alegres porque na
festa de São João iam comer batata-doce e beber quentão. Os homens cortavam a
lenha para fazer as fogueiras e preparavam o toldo para o baile.
Os dias de São João e Santo Antônio eram
designados ao casamento. As mulheres diziam:
_ Eu me casei no dia de Santo Antônio
para ele me proteger.
Mas eu ouvia dizer que é homem quem
deve proteger a mulher depois que se casam. Como era linda a mentalidade
infantil!
Eu achava o mundo feio e triste,
quando estava com fome. Depois que almoçava, achava o mundo belo.
Perguntei a minha mãe:
_ O mundo é tão bom! Ele é sempre
assim?
Não, respondeu-me. Dirigiu-me um olhar
tão triste, um olhar que preocupou-me. Mas insisti.
_ Mamãe! Mamãe... fala-me do mundo. O
que quer dizer mundo?
Ele me deu dois tapas, saí correndo e
chorando.
Minha tia Claudimira disse:
_ Você precisa dar um jeito nessa
negrinha. Ela vai te deixar louca.
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