sexta-feira, 27 de setembro de 2019

A FESTA


(Trecho do Livro “Diário de Bitita” de Carolina Maria de Jesus)

Eu ficava horrorizada quando via as mulheres abraçando os homens. Pensava:
“Por que será que as mulheres abraçam os homens, e os homens ficam contentes com os carinhos das mulheres?”
O que preocupava a minha mãe era a minha mentalidade. Se alguém perguntava:
_ A tua filha é louca?
Ela respondia:
_ A aparência é de louca. Mas não é.

Recordo quando minha mãe teve uma menina. Nasceu morta e podre, com as carnes desligando-se dos ossos. As pessoas que iam visita-la, saíam vomitando e comentando:
_ Eu nunca vi ninguém nascer assim.
Eles diziam que era sífilis. Ficava pensando: “O que será sífilis? Quando será que hei de aprender tudo que há no mundo?” Minha mãe dizia que trabalhou demasiadamente, lavando as colchas de algodão, mistas com lã tecidas no tear. Quando molhadas pesavam setenta quilos.
Às vezes eu notava as agitações do povo comprando tecidos para confeccionar vestidos para usar no dia de ano novo. Por que será que todos falam e sorriem nesse dia? E esses dias eram comemorados com bailes. Quem será que inventou o baile? Mas eu notava que o dia de ano novo era um dia igual aos outros com suas misérias e angústias.
Depois do ano novo era o Carnaval. Então o mundo era sempre assim? Todos os anos é a mesma coisa? Minha mãe disse que não.
O único mês que eu sabia que existia era o mês de maio. E os negros iam pedir esmolas. Saíam com uma bandeira com o retrato de São Benedito. Quando chegavam nas casas dos ricos, as madames introduziam a bandeira dentro dos quartos e salas suplicando ao santo que lhe auxiliasse. Embora elas tivessem casas para morar e alugar, roupas bonitas, comida em abundância, automóvel, banheiros com água quente para tomar banho todos os dias. Vivendo com conforto, ainda pediam o auxílio dos santos. Puxa! Será que os ricos não se contentam com o que têm? Para que esses desatinos para ficar rico, se quando morre deixa tudo! Elas davam a esmola, mas faziam inúmeros pedidos.
No dia da festa, o Américo de Sousa, filho de rico, era alegre e jocoso. Para assustar os negros que dançavam a congada pelas ruas, ele levantava às três da manhã e fazia cruzes de cinzas no meio da ponte que ia para o largo do Rosário. Quando os negros que dançavam a congada iam atravessar a ponte e viam as cruzes, ficavam com medo pensando que era feitiço. O Ameriquinho, reunido com outros brancos, dava risadas.
Mas o José Santana, que era o galã da festa e tinha um terno de congada, pulava por cima das cruzes de cinzas e era aclamado como herói pelo povo. Depois que o Santana havia pulado por cima das cruzes, o feitiço deveria ir para ele.
O que eu notava é que nas festas dos negros os brancos não iam. Um dia apareceu um senhor que não tinha pernas. Distribuiu uns convites convidando o povo para ir ouvi-lo tocar violão no cine Recreio. Tocou a valsa “Saudades do Matão”. A valsa já era por demais conhecida. Não foi um sucesso. Creio que estava aprendendo, porque não sabia ajustar a melodia tocando e a música cantando. Ou era mentiroso.
Vaiaram o pobre homem!
_ Fora! Vai tocar lá na China!
Que gargalhada. Todos sorriam, menos eu.
Porque a tristeza que notei no rosto do artista revelava que deveria existir coisa funesta na sua vida. Seria o complexo por não ter as pernas?
Tinha hora que eu tinha um medo do mundo! Era quando ouvia os homens falarem nas dificuldades que há para um homem encontrar trabalho. O mundo não é um paraíso para o homem. A guerra do Paraguai foi trágica, os homens matavam-se com canhões e bombas dinamites.
Quando eu estava com os adultos, ouvia-os falarem coisas que eu não compreendia. Quando estava com as crianças, brincávamos de roda, contávamos as histórias de fadas. E da princesa que ia dançar no inferno, porque era namorada do diabo.
O povo já estava afoito para as festas juninas. E todos falavam em Santo Antônio, São João Batista e São Pedro.
Uma mulher havia mandado um rei cortar a cabeça de São João Batista! Pensei: “As mulheres também mandam no mundo! Ah! Então eu também vou mandar, só que não vou consentir que cortem as cabeças dos homens. As mulheres brigam por causa de homens, gostam de beijá-los, choram porque querem os homens e depois mandam cortar a cabeça de um homem”.
Como odiei a mulher que mandou cortar a cabeça de São João Batista. Não dormi, pensando na dor que ele havia sentido. Foi o rei Herodes quem mandou cortá-la. Puxa! Então os reis são poderosos. Fiquei com medo dos reis, graças a Deus aqui no Brasil não temos rei. Um rei não deve ser mau. Ele deve ser bom.
Ouvia falar que haviam crucificado Jesus Cristo. Que Jesus Cristo também era um rei, mas mais poderoso que os outros reis.
As crianças estavam alegres porque na festa de São João iam comer batata-doce e beber quentão. Os homens cortavam a lenha para fazer as fogueiras e preparavam o toldo para o baile.
Os dias de São João e Santo Antônio eram designados ao casamento. As mulheres diziam:
_ Eu me casei no dia de Santo Antônio para ele me proteger.
Mas eu ouvia dizer que é homem quem deve proteger a mulher depois que se casam. Como era linda a mentalidade infantil!
Eu achava o mundo feio e triste, quando estava com fome. Depois que almoçava, achava o mundo belo.
Perguntei a minha mãe:
_ O mundo é tão bom! Ele é sempre assim?
Não, respondeu-me. Dirigiu-me um olhar tão triste, um olhar que preocupou-me. Mas insisti.
_ Mamãe! Mamãe... fala-me do mundo. O que quer dizer mundo?
Ele me deu dois tapas, saí correndo e chorando.
Minha tia Claudimira disse:
_ Você precisa dar um jeito nessa negrinha. Ela vai te deixar louca.


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