por Hillary LANCASTER
(Conto integrante da coletânea "Entre seus Lábios", disponível no Wattpad)
Instagran: @hy.lancaster
Wattpad: hylancaster
Queimava-lhe a face ardente
o sol que lhe tocava a pele com ardor. Ainda era cedo para tantos desvios, mas
aprendera que nunca seriam suficientes os caminhos para que houvesse pausa ou
fôlego a se tomar. Respirou uma ou duas vezes conforme seus pés reclamavam pela
exaustão e pelo delírio de mais um dia protelando, mais um dia rodeando a si
mesma quanto ao que fazer. Seria ela a ousadia de que precisava? Teria ela em
suas mãos o domínio necessário para que fosse em frente com todos aqueles
planos e sonhos que tanto sonhou por aqueles anos sem fim até que ousasse
tentar, talvez pela milésima vez, num hiperbólico pensamento astuto?
Estava cansada. Cansada não;
exausta. Já vinha tentando há alguns longos anos infindáveis, vinha buscando
fazer com que ganhasse a notoriedade e os méritos que sabia merecer, mas era
como se suas ações falhassem, como se sua boca emudecesse à simplória
possibilidade de conseguir algo enfim. Torturava-lhe a mente a tentativa
eterna, proveniente do erro e do nunca estar no tempo certo. Seriam seus passos
tão infundados a ponto de não saber-se feroz o suficiente para enfrentar esses
percalços tão alucinados e pesarosos? Amarrou o cabelo trançado sobre a cabeça,
sentindo o vento tocar-lhe a pele onde o cabelo havia sido raspado; imagem que
fazia temer outros e a olharem com depreciação, julgando quem era pelo que
mostrava às pessoas quando surgia em visão. Não era nada parecida com a massa
de mulheres que conhecia; tinha a pele negra; não. Mais que isso, tinha a pele
preta, preta como a noite escura, como seu povo e seus ancestrais que haviam
morrido há eras e os mesmos que continuavam a morrer ainda, continuamente, num
ciclo sangrento sem fim. Não usava os cabelos alisados; se negava a uma
padronização sem sentido, pois se sentia linda e inteira em seus crespos
indomáveis, naquele tom de melanina e rebeldia que haviam rotulado sua
existência. Queixava-se da dureza da vida, admitia; mas até quando se
subordinaria às apelações e mandos de uma sociedade tão desumanamente hipócrita
e cruel? Sentia uma raiva enervescida dentro de si; um arremate brutal lhe
bater dentro do peito que parecia saber que o tempo passaria cada vez mais
acelerado, sem lhe deixar brecha para mais um segundo na corrosão dessa vida
quase sem sentido.
Haviam lhe dito que o tal
sentido de viver estava naquilo que tanto almejavam algumas almas pelos mundos:
alguns dinheiros obtidos em algum trabalho sem muita satisfação interior, mas
cheio de um reconhecimento externo meio parco e vulgar, como uma prostituição
quando não se tem escolhas; empurravam corpos em direção à banalidade do não
escolher e julgavam corpos e existências que em demasiado haviam feito, mas que
nada haviam conseguido socialmente, como se toda vida respirasse por reconhecimento
externo. Trisha tinha momentos de solidão; ela tinha momentos em que se
esquecia de como aquele sofrimento deveria ser medido e dosado, porque nem tudo
eram suas vontades; em variadas vezes, sofria pelo fracasso de acordo com as
expectativas dos outros, não própria. Ah, mas também entendia e via o sentido
de como a olhavam; e sejamos sinceras todas nós; sabemos bem ser verdade. Ela
tinha um pouco do tom do que representava a subversão; nem sempre pela
aparência arredia, mas muitas vezes pelo que dizia quando seus lábios se abriam
e deliravam para o mundo toda sua sujeira e malandragem ímpia. Era difícil ver
Trisha em moldes e caixas que moldavam corpos e situações; ela era tão própria,
tão propriamente específica...; mas quais de nós não o são? Era essa coragem de
ousadia que não permitia que algumas pessoas se aproximassem dela, desse
furacão pouco organizado, que destroçava com tudo mesmo quando estava perene.
Caminhando pela Rua de Los
Cuerpos, ela se pegou pensando em quantos corpos já haviam conhecido de sua
fúria e de sua injúria sobre o mundo em suas melhores noites e se recordou de
alguns amores, enquanto pedia o seu infrequente café no barzinho soturno onde
havia conhecido Moni, uma de suas aventuras românticas frustradas. Sentou-se,
dirigiu-se à bancada e esperou que alguém viesse atendê-la. Apoiou-se sobre a
cor amadeirada que se fazia presente e respirou fundo, enquanto aguardava, sem
qualquer pressa naquela manhã, já quase tarde. Hoje, ali, Trisha não tinha
pressa; não porque não a sentisse em suas veias, correndo o tempo todo, mas
porque não suportava a ideia de que, após mais uma negativa, ainda não pudesse
se dar um instante de sossego, por mais doloroso que fosse. Até quando sua
arte, sua doce e violenta arte, seria posta à prova como se teste estudantil
fosse e não valesse mais que duas notas no fim do mês? Suspirou. Aquilo a
estava cansando cada vez mais.
– Boa tarde, em que posso
ajudar? – a voz proferiu um pouco lânguida e escorregadia, como se ainda não se
tivesse acostumado com a ideia de uma semana longa pela frente. Trisha olhou
nos olhos amendoados da garota à sua frente e ponderou como ainda era jovem;
bobagens. Ela própria ainda era demasiado jovem e pouco passara das duas
décadas em Terra. Balançou a cabeça em negativa e viu como a garota lhe olhava
como se a negação fosse para ela.
– Fique à vontade. – Mas antes que a garota se movesse, Trisha
gesticulou com os braços para que ela ficasse.
– Não, por favor, um café.
Forte. Com chantilly.
A garota sorriu um pouco.
Era muito bonita ali, em seu uniforme verde-musgo, com o avental recobrindo-lhe
a camiseta branca um pouco mais larga que sua pele pálida. Observando-a de
perto, Trisha reparou na boca que lhe parecia macia e hidratada, como se ela se
prezasse a tornar doce os lábios a quem ousasse admirá-los. Sorriu para ela,
enquanto a via anotar seu pedido, sabendo que o chantilly conferia certo charme
ao pedido e certa emoção ao não-dito. A garota, que Trisha reparara ter um
pequeno broche com seu nome, Frank, tinha os cabelos raspados, em algum pente
baixo o suficiente para se deixar entrever o crânio com um desenho tatuado à
mostra. Gostou da forma como Frank tinha presença. Um certo tipo de existência
que lhe conferia ação à vida e ao mundo de uma sociedade tão doentiamente padronizada.
Tinha pele corpulenta e ousada, do tipo que carrega marcas, aqueles desenhos em
preto e branco que seu sangue absorvera nos desenhos mais inusitados que a
mente de Trisha poderia imaginar, ainda que sua cabeça rodopiasse pelos
alvéolos do Tempo.
– Levo para você em alguns
minutos. – ela proferiu e Trisha se concentrou no movimento de seus lábios;
aquele abrir e fechar que rodopiava como espirais pela brisa que passava
sorrateiramente por elas quando alguém abria a porta do bar-café em que
estavam. Trisha se sentiu inspirada ao ver como ela se movia e como tinha os
passos firmes e pesados, como se travassem uma luta constante com o mundo que a
rodeava. Gostou da forma como movia os lábios, os doces lábios espirais, e como
a voz, aquela sonoridade acentuadamente mais firme se prostrava num timbre de
quem flertava com o perigo quase que o tempo todo. Trisha sentiu o olhar
demorado de Frank sobre seus cabelos e como os olhos se detiveram alguns
segundos mais pelo pequeno símbolo desenhado no ombro nu; ela quase se esquecia
da marca consentida que fizera numa quase noite de delírio e um tanto mais de
álcool no vermelho de seu corpo, na qual permitiu que sua pele fosse desenhada
com uma pequeniníssima bandeira retangular com três faixas coloridas: rosa,
amarelo e azul. Quando acompanhou os olhos de Frank compreendeu seu olhar:
reconhecimento; mas o pequeno sorriso dela foi o que a denunciou quanto a
possíveis intenções além do mero fitar de corpos. Trisha se virou então,
caminhou até uma mesa com espaço para duas e se deixou jogar pesadamente sobre
a cadeira, num ímpeto selvageril de ignorância e contemplação. Queria ver as
estrelas agora. Mas como não podia, abriu seu bloco de folhas coloridas,
atingindo o azul com seu traçado, dando vida àquilo que não podia exigir dos
mundos. O sangue negro correu pelo papel e seus dedos-deus criaram
universos-vida. Ela tinha expressão séria quando estava concentrada e Frank,
enquanto operava os instrumentos para que o café surgisse estonteante tal como
a garota que o pedira, ela reparou como a testa franzia com um movimento
magistral de nervos, tal qual fera selvagem. Frank terminou o trabalho, deu
passos diretos em direção à garota que não lhe dera nome ou endereço e pediu a
John que tomasse conta dos ocasionais clientes que entrassem àquela hora. Ele
lhe piscou em breve espaço e acenou que fosse; tudo bem. Há tranquilidade por
aqueles horários, sabiam.
– Com licença, – Frank
começou deixando o pequeno pirex colorido que só servia a poucas pessoas. Os
emoldurados de raios de sol, junto ao azul escuro e o amarelo em traçados
simplórios e grandiosos, enquanto cores fortes assaltavam aos olhos, fizeram
Trisha tomar atenção e nota por alguns segundos. Sabia Frank reconhecer um
semblante aflito e tristonho, carregado duma agonia impiedosa. Ora, foram
tantos anos observando a si mesma naquele espelho quebrado de um quartinho
alugado em algum beco escuro da cidade de lugar nenhum; aquele reflexo lhe
conferia frustração e dor todos os dias e noites em que se via, porque em
verdade, se sentira perdida o suficiente para não se ver realmente. Tempos
nebulosos de verão.
Quando se aproximou e viu a
expressão sorridente de agradecimento, aproveitou-se da deixa e pronunciou com
maestria e simpatia um ‘Posso me sentar um minuto? ’, vendo Trisha assentir e
gesticular que se sentasse no banco vago, enquanto arrancava sua bolsa da
cadeira para Frank.
– Parece um pouco mal; gostaria
de um pouco de conversa para acompanhar? – Frank observou que os dedos da
garota seguravam uma caneta escura e que desenhavam sobre folhas de cores
diversas. O amontoado pequeno era emoldurado por suas linhas e suas desventuras
contornando alguns céus com uma ousadia um tanto vertiginosa. E havia talento
ali, em seus doces tons, na forma como sua identidade narrava o ritmo atemporal
da arte. Frank viu seus olhos ficarem surpresos com a pergunta, mas logo em
seguida ouviu-a proferir em lábios um algo inconsistente e duro como o asfalto
que queimava a pele nua.
– Mais uma negativa para a
minha coleção revolucionária. Ainda estamos presos nesse mundo em que arte é
lixo escondido nas ruas insalubres e mal frequentadas? - E ela continuava a jorrar seu mel-fel,
olhando ora para Frank, ora para as janelas que davam para um pequeno jardim.
Ela deixava que tudo ali dentro de si jorrasse, tudo dentro de si florescesse e
morresse sobre uma mesa de um pequeno bar quase sofisticado. Ela declamava sua
dor, sem deixar de rabiscar vez ou outra alguma linha incoerente. E que
angústia quando ela dizia, com lábios trêmulos e lúcidos em demasia, como a
vida era mundana e como a sociedade nos estragava e nos amargurava. Que visão
esplêndida de um social já calejado e tolo!
– Perdemos toda a noção da
arte; esquecemos quem somos e matamos um a um, cada um dos sonhos que
acreditávamos que tinha. Eu sou apenas uma garota em corpo de mulher que vai
morrer sem a mordomia de um desejo realizado.
Frank conhecia do desespero.
Conhecia desse mundo parco e sem vida, dessa dureza indômita e banal e tão
vulgar que fazia com que alguns corações selvagens quase desistissem. Quase,
quase. Eram tão desumanos esses atributos de seres vivos, respirantes,
flutuantes. Estávamos morrendo. Estávamos nos enforcando em quadras, passarelas
e escritórios, dizendo sim e amém a quem quer que nos desse o verde que pagaria
as contas do mês que se encerrava. Vivíamos nos vendendo. E ora! Como era
necessário. Olhe só para esses corpos ao seu lado, em ônibus e salas em horas
infinitas todos os dias, esperando o tão sonhado descanso semanal. Morrendo,
morrendo, morrendo. Comendo como quem implora; sonhando como quem tem medo de
viver para sempre confinado; sorrindo como quem teme o próximo passo.
– Você. Eu. Todas essas
pessoas ao nosso redor: estão todas condenadas. Quantas de nós vão ter um
mísero desejo atendido, uma mínima chance de um sonho experenciado?
Trisha ergueu o queixo e
contemplou as ruas com um pequeno fluxo de carros se movendo pela linha do
horizonte. Estava desesperançada.
Àquela tarde, por algumas
horas, conseguiu dar boas risadas e sorrir com as histórias e o ouvido
atencioso de Frank; ela era uma pessoa de vários atributos e isso a humanizou
um tanto ainda maior do que já lhe tinha em coração. Gostou do riso solto e
macio daquela não-binariedade diante dela. Daquele aspecto sem lei e fé que
arrematava seu coração com uma força quase estranha e tão ardentemente familiar
que a deixava sem fôlegos. Frank era a mescla distante e distinta, um pouco de
tudo o que conhecera nesses anos conhecendo de corpos em máscula e feminina
forma, um e outro nem sempre como a sociedade encerrava seu depor. Amara homens
e mulheres, corpos de todas as cores e de etnias que sequer conhecia a fundo, a
não ser a linguagem do desejo que percorrera suas noites incandescentes. Ali, com Frank, seu desolar ainda era forte e
presente, mas adocicado de alguma forma. Seus olhos verdes brilhavam à parca
luz do ambiente de que cuidava. Quadros de corpos nus decorava suas paredes em
um ou outro retrato. E de seus lábios quase cheios, as palavras.
Não serei eu a mentir a você; almas perdidas se reconhecem e
a minha ainda vaga. A minha ainda é um pedaço duro e vazio que busca um consolo
e um prazer e você sabe que isso talvez mude. Ou não. Daqui a décadas; sequer
estaremos aqui para ver isso. A respiração pausada,
os olhos sugando Trisha para dentro de si. A
gente vai morrer daqui 10 ou 30 anos e não vai sobrar muita coisa para ser
lembrada; talvez isso nem seja um motivo decente, mas sua arte é vida. E
Frank tinha a atenção da garota à sua frente, que se recusava a soltar a pena,
delirando sobre a carne-papel com sua tinta-sangue. Não serei eu a enganar a você, não serei eu que lhe trarei mais
mentiras sobre como as coisas serão lindas se tiver paciência; provavelmente
você acabe em um emprego quase estável, sem qualquer satisfação e se tiver
sorte, talvez receba o suficiente para ter alguns luxos bobos. Trisha tinha
seus olhos de repente atentos e sua expressão petrificou ao olhar para quem lhe
dizia tais palavras tal qual espada em riste direcionada ao coração. A maioria vai morrer sem a possibilidade de
um grande sonho realizado, mas no fim, não é isso ao que elas se prendem no
final do dia. Existe mais. Existe todo um mais que as pessoas se esquecem, um
todo que às vezes é tão parte de você, que não mais considera. A gente vive no
limiar do perigo e da letargia. E sempre esquecendo. Sempre perdendo.
Maravilhosa visão. Astuto
pensar. Aquela imensidão à sua frente reconhecia e sabia de verdades e, por um
momento, acreditou seriamente na ideia de que, ainda que nada fosse, já era.
– Beba o café; absorva o
instante, o momento. E depois – ela deu o sorriso com dar de ombros, como se
pouco importassem suas palavras, – Vá viver. Você tem muitos nãos ainda. E
alguns sins que farão toda a perspectiva mudar.
– Qual sua história? –
Trisha observou Frank com um pouco de esperança e curiosidade. – Também é um
espectro perdido?
– Quem de nós não é?
Entre seus lábios; entre
seus lábios havia um paraíso perdido, foi o que ela sentiu mais tarde. Quando
ouviu a resposta incubada e martírica de Frank, apenas sorriu. Mordeu os lábios
com quase hesitação e se sentiu numa pequena libertação de barras que a
prendiam detrás de seus medos. Havia abdicado tanto, havia se doado por muito
pouco. Ou nada. Enquanto esperava Frank se afastar e conversar algo com o
atendente que tomara conta da loja, Trisha rabiscou com mais afinco e
enobrecimento. Sentia uma raiva incandescida, um poderio que crescia e a tomava
com toda a incapacidade humana, com toda essa vadiagem e dor que seu corpo
lutava para recuperar. Ela morreria sem
a misericórdia de um grande sonho realizado. E enquanto Frank a chamava,
discreta e pacientemente até os fundos do café, Trisha sentiu-se perder muitas
coisas, mas ali, ganhar outras mais. Ousaria, como sempre fizera, com o corpo
aventureiro que era e que já lançara fúria por becos sem histórias e sem
limites. Frank saiu pela porta acompanhada de Trisha e enquanto o dia ainda
clareava ainda mais, numa explosão dum calor indúbio e possesso, elas se
arrastavam até aquela rua sem saída, pouco movimentada ao horário. Trisha
pensava como seria delírio; mais uma gota de pequena morte... E sequer tinha
alguma importância. O prazer seria seu pecado mais apaixonado e sua condenação
ainda mais sublime. Não tinha inibições; seguiu Frank até aquela pequena
portinhola, na qual ninguém as viu caminhar. Por que estava sedenta? E por que
alimentava suas dores com prazeres tão fugidios? A fugacidade a desalinhava num
fulgor bandido e necessário.
E enquanto sentia-se entrar
no ritmo, enquanto suas pernas jogavam a bolsa e os rascunhos pelo chão daquele
pequeno quarto de paredes levemente rosadas, ela sentia o toque de Frank pela
sua nuca, pelos seus ombros, recobrindo a escápula com todo seu domínio de quem
sofre. Trisha fechou os olhos e absorveu o quadro a sua frente, enquanto as
árvores lhe faziam respirar um ar quase puro, tal real fossem. Pinturas e mais
pinturas, ela sentia que as folhas lhe roçavam o corpo e o toque de Frank era
chuva, enquanto sua pele era a terra.
Ah, estrelas.
Ah, imensidão.
Trisha não se lembra de ter
ligado música, mas Frank bem o fez assim que adentrou os primeiros passos até
aquelas paredes.
Ah, fulgor.
Era Frank ou as folhas
estavam recobrindo-a de beijos molhados, enquanto choviam céus?
Ah, prazer.
E aqueles toques dançavam
seu corpo e ora, ela estava se mexendo, suas costas ainda vestidas presas ao
corpo de Frank e como ela gostou da sensação quente que sentiu.
Ah, reverberações.
Me ame e me mate, ela queria gemer. E foi o que fez.
Me dilacere e me coma, foi o que seus lábios, seus putos lábios,
pronunciaram com a banalidade de suas ações.
Me encrue e me devore, ela não tinha mais roupas.
Ah, satisfação.
Não havia o papo torto, os
acordes enrolados e duvidosos que agem com medo;
Ah, hesitação.
Havia mais dela por aquele
cômodo, mais daquele chão que conheceu de lábios.
Ah, lábios.
O mar vibrou com a
tonalidade rubra dos corpos, do negro e do branco, do impuro e do vadio.
Me prove e me dilacere, mas ela não dizia com a boca santa; ela implorava por
aquele prazer fugaz que acabaria em alguns segundos e com aquele tom de quem
engole e mastiga e enraivece.
E.n.g.r.a.n.d.e.c.e.
E aquelas folhas, aquelas
doces folhas molhadas, que escorriam pelo seu corpo, molhando-as como se elas
fossem aquele paraíso perdido de uma tela qualquer comprada em alguma loja
barata. Ora, sua arte acabaria assim também, nesses pequenos becos de esquinas
escuras sem qualquer valor. Algumas notas azuis que bem imitavam os grandes
valores seria o preço de sua arte, de suas criações, de sua essência preta e
pan.
Mas me coma, me elucide as teorias dos universos com seu
corpo-flores,
suas carnes conversavam pelos gemidos e pelos sons que irradiavam a pele
mundana. Não peça desculpas, me marque com
a ira que vem das marés. Trisha queria o ódio, mas também o desespero. Me mostre do que sou feita e me faça querer
ser outra, mas ela era uma louca vadia sem lei e assim morreria, assim
sofreria a sua pequena morte, o seu pequeno delírio e assim seria lembrada. Me faça
ser presente, já que em passado morri e que em futuro nada serei. E Frank
redescobria aquele corpo nunca visto, mas já explorado, e contornava com suas
malícias a sua loucura e a agonia que as peles urravam com sentidos absurdos.
Os corpos em luxúria acetinada e inadequada reverberavam o trânsito abrupto e
delirante do horário, rindo com a inocência cruel do mundo. Suavam suas carnes,
doíam seus amores perdidos, lamentavam toda sua insorte, com se existissem nas
regras do mundo tais vocabulários insensatos.
E que a devorassem a carne;
ela sentia cada baque. Ela sentia cada pancada que lhe ressoava a mente com as
verdades que já conhecia tão bem: ela morreria e que dura morte seria, mais um
corpo na avenida, balançando sem a energia de quando viva. Seria notícia por
alguns sóis e algumas luas, diriam como era nova e que pena para sua morte, mas
o sistema continuaria a girar sem qualquer pretensão de salvar algumas almas.
Mas quem diria a verdade? Quem falaria o que estava realmente acontecendo?
Alguns morria; outros enriqueciam.
E enquanto Frank tomava seu
corpo e ela regozijava com o prazer do toque e da pele, com o mundano e o
vadio, ela fechou os olhos e se permitiu morrer mais uma mísera vez, num
acalento misterioso e delicioso.
Por aquela tarde, alternaram
assim suas angústias: entre corpos e prazeres, entre esquecimentos e
lembranças; a dor de existir em partes seria para sempre um fato; uma
constatação em meio a constelações perdidas e pouco iluminadas.
Pouco importava.
Poucas noites depois, após
um delírio fatal, assim acabou.
O corpo de prazeres,
encontrado em cordas, pendendo de um teto luxuoso, contrastando com toda a
fortuna e riqueza de um dos mais atordoantes palácios da cidade, ressoou em
gritos e desarmonia. Nunca fora notada, a preta do cabelo trançado que tinha
arte nas veias e sonhos nos olhos. Nunca fora vista a preta pan, de amores e
sabores, cujo talento ficara em papéis perdidos pelo pequeno apartamento em que
fazia moradia. Nunca fora escolhida, sempre lhe tomaram os nãos e agora pendia
dali, balançando com a cabeça amolecida, o corpo ainda quente, quase passível
de ser salvo, bailando só pelo salão iluminado. Centenas de pessoas urrando e
correndo em desespero com suas roupas caras e seus olhos de brilhantes, se perguntando
como aquela garota tão nova fora parar ali.
Oh, por que tão cedo?
Por quê? Tão jovem!
Por quê?
Por quê?
Eram sempre as mesmas
perguntas no mesmo ritmo parco e insensato.
Ela desistira.
Mas já tinha morrido um
pouco a cada manhã, a cada não, a cada tentativa que sempre resultava em
olhares julgadores, em línguas ferozes e violências contra sua cor e suas
paixões. Ela morrera, mas já vinha
morrendo sempre; por que se espantavam esses corpos que já a esqueciam na manhã
seguinte? Ela fora mais um número.
Mais um número na balança
sem oração.
Sem coração.
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