terça-feira, 4 de agosto de 2020

O CACHEADO

A garotada da rua inteira se escondia quando a temível carrocinha dobrava a esquina, de modo barulhento, com o Cacheado na sua condução.

Alguns diziam que ele tinha um pacto com o “velho tinhoso”; outros, que ele era um poderoso feiticeiro. Os mais sensatos, porém, falavam que ele era apenas um andarilho. Eu nunca soube, ao certo, quem ele era. Mas nós, as crianças, tínhamos uma certeza: ele era a pessoa mais atemorizante que conhecíamos.

Era negro, forte e alto. Tinha uma cabeleira muito grande e cacheada, queimada do sol. Andava com roupas um tanto desengonçadas e esfarrapadas. Em sua carroça, inúmeras coisas saltitavam para lá e para cá, fazendo um barulho peculiar para cada metro que alcançava, sem contar nas dezenas de cães que viviam ao seu redor, como uma escolta.

Eu nunca soube realmente o que ele fazia ou o que ele tanto conversava com as pessoas, pois à simples menção de sua chegada, todos nós, meus amigos e eu, saíamos correndo como doidos. Às vezes me escondia debaixo da cama ou dentro do guarda-roupa, especialmente se eu havia feito alguma traquinagem por aqueles dias, pois minha mãe sempre gritava: “Vou mandar o Cacheado te levar com ele na carroça... Você que não tome jeito menina... senão vai ver!!!!”

Hoje medito sobre todas essas pessoas que passam por nossas vidas e de alguma forma dela participam, nos proporcionando medos, tristezas, amizades, alegrias, irritações, entre outras tantas experiências. Pessoas como o Cacheado, que mesmo com o nosso medo, preconceito de crianças bobas, jamais deixava de sorrir e acenar. Quem era ele? Qual o seu nome? De onde ele era? Onde morava? Tinha família?

Isso, talvez, seja um “algo” natural em nossas vidas. Uma espécie de mágica realizada pelo decurso implacável do tempo. Grandes pessoas passaram por mim ensinando-me de alguma forma. Algumas pelo amor, outras pela dor, mas todas indo embora do mesmo modo que chegaram: suavemente, sem estardalhaços.

Acho que pessoas são como livros e o mundo uma grande biblioteca abarrotada de todo o tipo de gêneros. Cada um que vem ao nosso encontro é como um livro novo que dedicaremos uma porção de tempo antes de devolvê-lo à biblioteca da vida. Por isso é besteira tentar mudar alguém, pois não se pode mudar o final de um livro, a menos que você seja o autor. E autor, que somos, lidamos apenas com nossas histórias.

Sorrio sozinha. Por mais improvável que seja, ainda escuto o barulho da carrocinha virando a esquina, quando fecho os olhos, e a energia das gargalhadas do Cacheado, soltas de modo franco, enquanto falava com meus pais. Ele foi o primeiro livro de minha tenra infância e, amedrontada que estava com sua presença, jamais me importei em saber seu verdadeiro nome.


G. P. Silva Rumin

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