A
garotada da rua inteira se escondia quando a temível carrocinha dobrava a
esquina, de modo barulhento, com o Cacheado na sua condução.
Alguns diziam que ele tinha um pacto com o “velho tinhoso”; outros, que ele era um poderoso feiticeiro. Os mais sensatos, porém, falavam que ele era apenas um andarilho. Eu nunca soube, ao certo, quem ele era. Mas nós, as crianças, tínhamos uma certeza: ele era a pessoa mais atemorizante que conhecíamos.
Era
negro, forte e alto. Tinha uma cabeleira muito grande e cacheada, queimada do
sol. Andava com roupas um tanto desengonçadas e esfarrapadas. Em sua carroça,
inúmeras coisas saltitavam para lá e para cá, fazendo um barulho peculiar para
cada metro que alcançava, sem contar nas dezenas de cães que viviam ao seu
redor, como uma escolta.
Eu nunca
soube realmente o que ele fazia ou o que ele tanto conversava com as pessoas,
pois à simples menção de sua chegada, todos nós, meus amigos e eu, saíamos
correndo como doidos. Às vezes me escondia debaixo da cama ou dentro do
guarda-roupa, especialmente se eu havia feito alguma traquinagem por aqueles
dias, pois minha mãe sempre gritava: “Vou
mandar o Cacheado te levar com ele na carroça... Você que não tome jeito
menina... senão vai ver!!!!”
Hoje
medito sobre todas essas pessoas que passam por nossas vidas e de alguma forma
dela participam, nos proporcionando medos, tristezas, amizades, alegrias,
irritações, entre outras tantas experiências. Pessoas como o Cacheado, que
mesmo com o nosso medo, preconceito de crianças bobas, jamais deixava de sorrir
e acenar. Quem era ele? Qual o seu nome? De onde ele era? Onde morava? Tinha
família?
Isso,
talvez, seja um “algo” natural em nossas vidas. Uma espécie de mágica realizada
pelo decurso implacável do tempo. Grandes pessoas passaram por mim ensinando-me
de alguma forma. Algumas pelo amor, outras pela dor, mas todas indo embora do
mesmo modo que chegaram: suavemente, sem estardalhaços.
Acho que
pessoas são como livros e o mundo uma grande biblioteca abarrotada de todo o
tipo de gêneros. Cada um que vem ao nosso encontro é como um livro novo que
dedicaremos uma porção de tempo antes de devolvê-lo à biblioteca da vida. Por
isso é besteira tentar mudar alguém, pois não se pode mudar o final de um
livro, a menos que você seja o autor. E autor, que somos, lidamos apenas com
nossas histórias.
Sorrio
sozinha. Por mais improvável que seja, ainda escuto o barulho da carrocinha
virando a esquina, quando fecho os olhos, e a energia das gargalhadas do
Cacheado, soltas de modo franco, enquanto falava com meus pais. Ele foi o
primeiro livro de minha tenra infância e, amedrontada que estava com sua
presença, jamais me importei em saber seu verdadeiro nome.
Nenhum comentário:
Postar um comentário