quarta-feira, 28 de julho de 2021

LOUCOS SÃO OS OUTROS

 

São 12:12 de um dia estupidamente quente. Volto do restaurante, no intervalo de almoço, sem ânimo algum para ir a qualquer lugar, em razão do sol escaldante. Sento-me em frente ao prédio em que trabalho e, sem saber a razão, deparo-me com uma mulher estranha. Não estranha por seus gestos ou por sua fisionomia, mas estranha porque, de fato, visivelmente, não trabalhava na mesma empresa que eu. E, muito embora fosse um local público, confesso que, dificilmente, alguém que não trabalhasse na empresa sentava-se ali.

Sentada, sorridente, rascunhava o que parecia ser um desenho. Tinha um violão, que deixava constantemente a seu lado, juntamente com uma mochila cheia do que me parecia roupas. Vez ou outra tocava em seu cabelo, curto e encaracolado, como se o estivesse arrumando para uma festa. Não falou comigo ou com qualquer colega meu durante o horário de almoço.

Observei que essa situação se repetiu por incontáveis dias, a ponto de a mulher tornar-se, involuntariamente, parte daquele cenário diário. Um dia, porém, estarrecida, percebi algo diferente. Ela conversava. Não com alguém que, como eu, sentava-se ali na hora do almoço. Ela sequer prestava atenção em mim ou em meus colegas. Falava, sorridente, com um gesticular leve, com aquilo que julguei ser um amigo imaginário.

Naquele mesmo dia, saindo do trabalho para retornar a casa, encontrei uma colega no caminho. Ela ia fumar e reparei que ia em direção oposta à “ala dos fumantes”. _ Não vai por ali, Dani? _ indaguei instintivamente.

_ De jeito nenhum... _ ela protestou _ A louca está lá...

Pisquei os olhos atônita. Lancei um sorriso de despedida, enquanto minha amiga acendia o cigarro e engatava em um papo descontraído com outra colega que havia chegado. Quanto a mim, entrei no carro. Fiquei alguns minutos com as mãos presas ao volante, sem saber se o que sentia era vergonha ou tristeza.

Normal. O que seria normal? Eu acordo todos os dias às 05:00 da manhã; tomo uma vitamina de frutas; tomo um banho rápido; bebo café preto; visto-me com roupas de ginástica; coloco lanches, feitos no dia anterior, em minha valise térmica; coloco minha mochila com roupas, minha valise e minha pasta de trabalho no carro; ligo o alarme da casa; dirijo, freneticamente, por uma madrugada que está findando até a academia; executo uma rotina pesada de exercício de crossfit; tomo meu banho meticuloso após o fim do treino; visto uma roupa social, e desconfortável, para trabalhar as próximas oito, nove e até doze horas; sinto-me completamente culpada por dar umas duas ou três baforadas em um cigarro; executo o mesmo trabalho, diariamente, há mais de quinze anos; estresso-me pelos mesmos motivos, há mais de quinze anos; saio do trabalho, às vezes após o sol se pôr; dirijo por um trânsito caótico até minha casa; preparo meu jantar, lanches e arrumo minha mochila com as roupas que irei usar no trabalho, tudo para o dia seguinte; escrevo um pouco; atiro-me diante da televisão para assistir o mesmo seriado, meu favorito, todos os dias, limitando-me a um capítulo, pois tenho de acordar cedo; deito-me com a cabeça cansada, fervilhando com inúmeros pensamentos que me indagam quais decisões tomei em meu passado que me conduziram para aquele lugar; rezo até dormir, na certeza que o dia seguinte será igual ao dia que se foi.

E qual a razão de tudo isso?

Alimento-me com comidas saudáveis, por que médicos me dizem que isso fará bem para minha saúde; exercito meu corpo, porque os especialistas dizem que fará bem à minha saúde; esforço-me em uma rotina pesada de exercícios, na esperança de melhorar meu corpo, porque alguém inventou imagens sociais do que é feio e bonito; trabalho arduamente, em uma profissão que detesto, mas que me ensinaram que traria prestígio e respeitabilidade; anseio por ganhar dinheiro para poder adquirir bens que me a sociedade considera sinônimo de sucesso. Sinto culpa, quase cármica, quando tomo bebida alcóolica, fumo ou como algo não rotulado de saudável, como se fossem passagens direta à morte ou ao inferno; vou a cerimônias religiosas, porque me ensinaram que Deus precisa de meu louvor; rezo até dormir, porque me ensinaram que agradecer a Deus à noite, era abrir caminhos para um bom dia na manhã seguinte; convivo com pessoas que detesto, porque me disseram que era preciso aprender a conviver; engulo, diariamente, centenas de sapos, porque me ensinaram que falar o que se pensa era desrespeito; omito minha orientação sexual, porque a sociedade ditou a heterossexualidade como regra de conduta; visto-me com roupas sociais e desconfortáveis, porque a sociedade estabeleceu que, como advogada, minha respeitabilidade e competência é medida por isso.

E para quê? Às vezes penso que tudo nasceu do medo e tudo parece tornar a ele. O ser humano tem medo do descontrole. Temos medo de vagar pelas ruas, com roupas casuais, falando com nossos amigos imaginários, sem se preocupar onde dormir, em que trabalhar e nas infinitas contas que a vida moderna nos remete para pagarmos.

O medo do descontrole cria nossas rotinas, nos engessa, nos enclausura, nos define. Coma isso se quiser ter saúde; faça isso, se quiser ser considerado bonito; fale deste modo, para ser respeitado; vista-se desse modo, se quiser ser considerado competente; compre bens materiais, se quiser ser considerado bem sucedido.

E consideração é tudo que buscamos. Uma consideração totalmente direcionada aos outros, em detrimento da consideração que deveríamos ter por nós mesmos. Afinal de contas, o medo é carrasco; tortura até as almas mais fortes, na esperança de subjugar todo e qualquer resquício de individualidade.

Voltei para casa, naquele dia, pensativa. Não. Aquela estranha não era doida. Era livre. Certamente, não devia frequentar um consultório psiquiátrico na esperança de tratar com medicamentos as neuroses que a vida moderna nos impõe. Afinal de contas, ela tinha um amigo imaginário com quem conversar.

Não tinha a face sisuda, que o stress diário nos impõe vinte e quatro horas por dia. Simplesmente sentava-se em um banco, desenhando e conversando com seu amigo, sem se importar com o que ocorria a seu redor, muito menos com a opinião do resto do mundo. Curtia o sol, a brisa, o movimento da vida. Comia o que desejava, fazia o que desejava... E, curiosamente, nunca vi uma face tão feliz em toda a minha vida... Ela não aparentava ter qualquer resquício de medo ou dor... Era, simplesmente, feliz.

E ela é, realmente, o louco da história? Ao me recordar dela penso que a maior loucura humana foi ter criado regras do que venha ser normal. E quando vemos essa multidão de espíritos livres, sorridentes e conversantes, amparados por seus amigos imaginários, automaticamente vem à nossa mente a resposta ensaiada, que aprendemos desde o berço: “são loucos!”. E, para nós, os autômatos da vida, loucos são sempre os outros...

G. P. Silva Rumin

Nenhum comentário: