São 12:12 de um dia estupidamente quente. Volto do restaurante, no intervalo de almoço, sem ânimo algum para ir a qualquer lugar, em razão do sol escaldante. Sento-me em frente ao prédio em que trabalho e, sem saber a razão, deparo-me com uma mulher estranha. Não estranha por seus gestos ou por sua fisionomia, mas estranha porque, de fato, visivelmente, não trabalhava na mesma empresa que eu. E, muito embora fosse um local público, confesso que, dificilmente, alguém que não trabalhasse na empresa sentava-se ali.
Sentada, sorridente, rascunhava o que
parecia ser um desenho. Tinha um violão, que deixava constantemente a seu lado,
juntamente com uma mochila cheia do que me parecia roupas. Vez ou outra tocava
em seu cabelo, curto e encaracolado, como se o estivesse arrumando para uma
festa. Não falou comigo ou com qualquer colega meu durante o horário de almoço.
Observei que essa situação se repetiu
por incontáveis dias, a ponto de a mulher tornar-se, involuntariamente, parte
daquele cenário diário. Um dia, porém, estarrecida, percebi algo diferente. Ela
conversava. Não com alguém que, como eu, sentava-se ali na hora do almoço. Ela
sequer prestava atenção em mim ou em meus colegas. Falava, sorridente, com um
gesticular leve, com aquilo que julguei ser um amigo imaginário.
Naquele mesmo dia, saindo do trabalho
para retornar a casa, encontrei uma colega no caminho. Ela ia fumar e reparei
que ia em direção oposta à “ala dos fumantes”. _ Não vai por ali, Dani? _
indaguei instintivamente.
_ De jeito nenhum... _ ela protestou _ A
louca está lá...
Pisquei os olhos atônita. Lancei um
sorriso de despedida, enquanto minha amiga acendia o cigarro e engatava em um
papo descontraído com outra colega que havia chegado. Quanto a mim, entrei no
carro. Fiquei alguns minutos com as mãos presas ao volante, sem saber se o que
sentia era vergonha ou tristeza.
Normal. O que seria normal? Eu acordo
todos os dias às 05:00 da manhã; tomo uma vitamina de frutas; tomo um banho
rápido; bebo café preto; visto-me com roupas de ginástica; coloco lanches,
feitos no dia anterior, em minha valise térmica; coloco minha mochila com
roupas, minha valise e minha pasta de trabalho no carro; ligo o alarme da casa;
dirijo, freneticamente, por uma madrugada que está findando até a academia;
executo uma rotina pesada de exercício de crossfit;
tomo meu banho meticuloso após o fim do treino; visto uma roupa social, e
desconfortável, para trabalhar as próximas oito, nove e até doze horas;
sinto-me completamente culpada por dar umas duas ou três baforadas em um
cigarro; executo o mesmo trabalho, diariamente, há mais de quinze anos;
estresso-me pelos mesmos motivos, há mais de quinze anos; saio do trabalho, às
vezes após o sol se pôr; dirijo por um trânsito caótico até minha casa; preparo
meu jantar, lanches e arrumo minha mochila com as roupas que irei usar no
trabalho, tudo para o dia seguinte; escrevo um pouco; atiro-me diante da
televisão para assistir o mesmo seriado, meu favorito, todos os dias,
limitando-me a um capítulo, pois tenho de acordar cedo; deito-me com a cabeça
cansada, fervilhando com inúmeros pensamentos que me indagam quais decisões
tomei em meu passado que me conduziram para aquele lugar; rezo até dormir, na
certeza que o dia seguinte será igual ao dia que se foi.
E qual a razão de tudo isso?
Alimento-me com comidas saudáveis, por
que médicos me dizem que isso fará bem para minha saúde; exercito meu corpo,
porque os especialistas dizem que fará bem à minha saúde; esforço-me em uma
rotina pesada de exercícios, na esperança de melhorar meu corpo, porque alguém
inventou imagens sociais do que é feio e bonito; trabalho arduamente, em uma
profissão que detesto, mas que me ensinaram que traria prestígio e
respeitabilidade; anseio por ganhar dinheiro para poder adquirir bens que me a
sociedade considera sinônimo de sucesso. Sinto culpa, quase cármica, quando
tomo bebida alcóolica, fumo ou como algo não rotulado de saudável, como se
fossem passagens direta à morte ou ao inferno; vou a cerimônias religiosas,
porque me ensinaram que Deus precisa de meu louvor; rezo até dormir, porque me
ensinaram que agradecer a Deus à noite, era abrir caminhos para um bom dia na
manhã seguinte; convivo com pessoas que detesto, porque me disseram que era
preciso aprender a conviver; engulo, diariamente, centenas de sapos, porque me
ensinaram que falar o que se pensa era desrespeito; omito minha orientação
sexual, porque a sociedade ditou a heterossexualidade como regra de conduta; visto-me
com roupas sociais e desconfortáveis, porque a sociedade estabeleceu que, como
advogada, minha respeitabilidade e competência é medida por isso.
E para quê? Às vezes penso que tudo
nasceu do medo e tudo parece tornar a ele. O ser humano tem medo do
descontrole. Temos medo de vagar pelas ruas, com roupas casuais, falando com
nossos amigos imaginários, sem se preocupar onde dormir, em que trabalhar e nas
infinitas contas que a vida moderna nos remete para pagarmos.
O medo do descontrole cria nossas
rotinas, nos engessa, nos enclausura, nos define. Coma isso se quiser ter saúde;
faça isso, se quiser ser considerado bonito; fale deste modo, para ser
respeitado; vista-se desse modo, se quiser ser considerado competente; compre
bens materiais, se quiser ser considerado bem sucedido.
E consideração é tudo que buscamos. Uma
consideração totalmente direcionada aos outros, em detrimento da consideração
que deveríamos ter por nós mesmos. Afinal de contas, o medo é carrasco; tortura
até as almas mais fortes, na esperança de subjugar todo e qualquer resquício de
individualidade.
Voltei para casa, naquele dia, pensativa.
Não. Aquela estranha não era doida. Era livre. Certamente, não devia frequentar
um consultório psiquiátrico na esperança de tratar com medicamentos as neuroses
que a vida moderna nos impõe. Afinal de contas, ela tinha um amigo imaginário
com quem conversar.
Não tinha a face sisuda, que o stress
diário nos impõe vinte e quatro horas por dia. Simplesmente sentava-se em um
banco, desenhando e conversando com seu amigo, sem se importar com o que
ocorria a seu redor, muito menos com a opinião do resto do mundo. Curtia o sol,
a brisa, o movimento da vida. Comia o que desejava, fazia o que desejava... E,
curiosamente, nunca vi uma face tão feliz em toda a minha vida... Ela não
aparentava ter qualquer resquício de medo ou dor... Era, simplesmente, feliz.
E ela é, realmente, o louco da história?
Ao me recordar dela penso que a maior loucura humana foi ter criado regras do
que venha ser normal. E quando vemos essa multidão de espíritos livres,
sorridentes e conversantes, amparados por seus amigos imaginários, automaticamente
vem à nossa mente a resposta ensaiada, que aprendemos desde o berço: “são
loucos!”. E, para nós, os autômatos da vida, loucos são sempre os outros...
G. P. Silva Rumin
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