segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Trecho do livro "June", Capítulo I, Inocência Perdida, por G. P. Silva Rumin


Paralelo ao mundo de June, outro mundo desenrolava-se em seu país naquele tempo. A ditadura havia terminado recentemente e um novo presidente havia sido eleito pelo congresso, sem a participação do povo. Antes, porém, da posse ser realmente concretizada, sua morte foi anunciada, para desespero dos partidários da democracia. Assim, a solução tangencial foi empossar o vice, aos arrepios da lei, tamanho era o medo do retorno à era ditatorial, com todos os abusos, falsidades e perseguições.

A situação política na época era instável e o país encontrava-se em uma crise econômica que o conduzia ao abismo. Por todos os lados ouvia-se que a inflação engolia salários e que os preços estavam cada vez mais altos. Alguns mais ousados limitavam-se a gritar em altos brados que na época ditatorial tais problemas não existiam, enquanto os mais esclarecidos buscavam mostrar ao povo que a fase negra em que se encontravam resultava da inabilidade administrativa daqueles que conduziram o país durante o período ditatorial.
O povo, porém, nada compreendia desses assuntos, limitando-se a repetir apenas o que viam e ouviam nos noticiários. A grande massa popular mal sabia o que era democracia, muito menos compreendia a diferença entre ela e a ditadura. Nas escolas o conteúdo ensinado, durante mais de vinte anos, consistia num programa rigorosamente controlado pelo Estado e os poucos que chegavam às faculdades eram vigiados pelos órgãos policiais desse sistema.
Todas as vozes que se levantaram foram silenciadas, em sua maioria mediante situações ainda hoje não esclarecidas e outras através de exílios. O restante limitou-se ao acomodamento diante da situação, preferindo permanecer na ignorância política a buscar esclarecimento.
Assim como foi dito anos mais tarde, não era de se espantar que o movimento democrático partisse das mesmas elites que fomentaram a ditadura. O povo não possuía amadurecimento para compreender a democracia e por isso sujeitou-se ao governo opressor. Quando este não estava mais de acordo com os interesses das elites, a democracia foi novamente implantada e, quando esse momento chegou, os meios de comunicação cumpriram fielmente sua tarefa de insuflar as massas populares para representarem seu papel, mediante a promoção de passeatas.
No meio de tanta turbulência, o Congresso Nacional, eleito pelo povo, promulga a primeira Constituição do período pós-ditadura, estabelecendo as bases institucionais da democracia que se instaurava e que demoraria a se afirmar. Por todo o país, exemplares da Constituição foram distribuídos nas casas do povo cidadão, que muito pouco compreendia de seu conteúdo.
Em verdade, para o povo, aquele livro de escrita difícil nada significava. Muito embora prometesse como bases da democracia o respeito à dignidade humana, tomando como diretrizes, entre outras, a erradicação das desigualdades sociais e o combate à pobreza, o país encontrava-se mergulhado na miséria, com problemas primários tais como a falta de saneamento básico, com uma grande cota de seres humanos à beira da indigência, vivendo em situação subumana. Para o povo, a Constituição de nada significava, não passando de palavras escritas em um papel e, como se dizia, papel aceitava tudo.
Por esta razão, a Constituição foi recepcionada pelas massas com a mais absoluta apatia. A mesma que acompanha todas as leis, pois o mundo acostumou-se com o pensamento de que quanto mais leis regerem um país, mais civilizado ele será, muito embora em realidade isso só ateste ao mundo que o homem mais regride em sua civilidade. Para os animais selvagens criaram-se jaulas, para o homem moderno inventaram as leis.

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