Quando eu era criança, minha família morava
em uma casa de esquina. Meus irmãos e eu, juntamente com toda a criançada da
rua, costumávamos jogar futebol bem na reta de minha casa, já que uma das
paredes da cozinha, que dava na rua, era perfeita como fundo de um gol, apesar
dos protestos e ameaças de minha mãe, que se irritava facilmente com o
constante bater de bolas na parede.
Vinte e sete anos depois realizei um sonho
grande. Comprei uma casa, com quintal, garagem, quartos enormes, em meio a um
bairro tradicional da “cidade sem limites”, cheio daquelas coisas que nos fazem
lembrar uma cidadezinha do interior: cavalos perdidos em meio a terrenos
baldios, crianças indo e vindo com suas mochilas escolares nas costas,
vendinhas de esquina onde é possível encontrar de tudo um pouco (de tudo
mesmo!), idosos nas janelas ou sentados nas calçadas conversando sobre o tempo
e o mundo que, para eles, está sempre virado dos avessos. O paraíso para quem
veio do interior e tem problemas para se adaptar a uma cidade grande e cheia de
prédios.
Mas nem sempre o paraíso é tão lúdico. O que
eu não sabia é que minha casa, por uma espécie de justiça divina, também servia
como “ponto de encontro” para as peladas de toda a criançada da rua. E,
repentinamente, vi-me da temível situação de assemelhar-me à minha mãe, com
constantes crises de mau humor, a cada bolada que atingia meu portão ou meu
muro.
Mas muros e portões são imunes às boladas. O
grande problema começou quando, para obter-se o “Habite-se” na casa, a prefeitura
exigiu o plantio de uma árvore na calçada.
Como todo habitante da “cidade sem limites”,
sujeitei-me a um intrincado processo que, além de toda a documentação usual, exigiu
que eu comparecesse até o Viveiro Municipal para escolher uma muda de árvore,
dentre as previamente aprovadas pelo órgão que cuidava da arborização dos
bairros. Por destino ou não, fui atraída pela beleza exuberante da foto de uma
quaresmeira florida em meio a outras tantas dispostas em um catálogo.
Recordo com certo ar de graça o dia em que o
jardineiro veio fazer o plantio. Foi um dos poucos momentos em que, de fato,
senti-me uma completa adulta, fazendo coisas de adulta. E, para mim, ter uma
casa, com árvore na frente, era de fato coisa de adulto. Não que não tivesse a
idade certa. Longe disso. Minha certidão de nascimento denunciava que, em
breve, eu entraria para o time das quarentonas. Mas, para mim, ser adulta era
mais que quatro décadas nas costas. Ser adulta significava independência e ter
uma casa, com árvore em frente, era ser independente.
Calçamos a quaresmeira com um cabo de
vassoura que, bravamente, tinha a missão de mantê-la de pé, independente das
intempéries que a atingisse. Mas eu, essa adulta pessimista e cheias de medos,
não me sentia à vontade toda vez que saia com o carro da garagem e olhava para
a árvore, inspecionando se a pelada da noite anterior não teria provocado algum
estrago.
Não podia deixar de pensar em sua
fragilidade, ali, largada em meio à calçada, sem proteção. E, todo santo dia,
temia. Temia que algum desavisado esbarrasse em seu caule, ainda fino; temia
que alguém, por maldade, a machucasse; temi que as boladas a atingissem, sem
piedade. Temi que a arrancassem.
O primeiro atentado foi o roubo
indiscriminado do escoro da árvore. Um crime hediondo, em minha mente
atormentada. Afinal de contas, quem em sã consciência, teria coragem de levar o
escoro de uma muda? Mas o mundo é cheio de surpresas e, para meu terror, o
segundo atentado foi o pior. Quebraram o ponteiro, cheio de folhas, e minha
preciosa quaresmeira, sem escoro e sem ponteiro, permanecia de pé só por Deus.
Era agora um fino caule apontando para o céu. E no decorrer dos dias, parecia
perder sua cor, tornando-se completamente morta e acinzentada, enquanto eu
planejava vingar-me da criançada, furando a bendita bola.
E o que mais poderia fazer? Mataram minha
quaresmeira e, com todo o ódio do planeta, mas com a praticidade de quem não
desejava brincar com burocracias, decidi que iria até o Viveiro Municipal atrás
de outra muda. Mas o destino, e sempre ele, pregava-me constantemente inúmeras
peças, enchendo-me de contratempos, que tornaram essa pequena tarefa um
indizível martírio. Simplesmente, não estava conseguindo tempo para resolver
isso que havia se tornado um enorme problema.
Na época, eu estava estudando, sem muita fé,
admito, um desses livros que trabalham a força do pensamento e imaginação em
nossas vidas. E a autora, Catherine Ponder, falava sobre o poder que temos de
criar nossas realidades através do que imaginamos, seja de modo consciente ou
inconsciente. Por dias a fio, meditei sobre o assunto, até que ao sair de casa,
por uma manhã, percebi o tamanho da vilania que meu medo poderia ter
desencadeado.
Imaginei aquela quaresmeira ferida e
desprotegida diante de inúmeras boladas por incontáveis ocasiões, a ponto de
sentir-me angustiada ao fitá-la, toda vez que saia ou chegava a casa, muito
antes dos desastres que a mataram ter acontecido. Porém, também pensei, que se
minha imaginação tivesse o poder de tê-la machucado, o que faria se eu imaginasse
a quaresmeira frondosa e cheia de flores, bem em frente a casa?
Por óbvio que teria de retirar o caule morto
para plantar uma nova muda. Mas, decididamente, tomei a decisão de fazer tudo
completamente diferente. E, dia após dia, muito embora não conseguisse ir ao Viveiro
Municipal buscar uma nova muda, ficava imaginando uma quaresmeira florida,
linda e viçosa, plantada em frente minha casa. E, com o tempo, notei que aquela
imagem mental, linda, fazia meu coração disparar de alegria.
Confesso que não sei ao certo quantos dias
permaneci fazendo esse pequeno exercício. Saia e chegava a casa, imaginando a
árvore ali em frente, já crescida. Um dia, porém, ao levar o lixo para a rua,
tomei um susto. Não um susto qualquer, mas um susto que eu diria positivo. No
alto daquele caule, que reputei morto, pequenos brotos de folhas se insinuavam,
deixando claro que o ponteiro quebrado estava sendo refeito. A cor do caule
havia voltado ao normal e a base da planta parecia mais grossa e firme que
antes.
Meu coração exultou de alegria! Em um
arroubo de proteção excessiva, corri até a primeira loja de jardinagem e
comprei todo o equipamento necessário para protegê-la melhor, mas, quando retornei,
o caule estava semipartido, provavelmente por uma outra bolada fatal.
Mas, dessa vez, não assinei a sentença de
morte da minha quaresmeira. Se ela havia ressurgido do mundo dos mortos uma
vez, renasceria novamente, e, como mandava o figurino, pus um novo escoro, mais
forte que o primeiro e a cerquei com uma grade de metal, com apoios fincados no
chão, mantendo em minha mente a imagem daquela árvore frondosa em frente minha
casa. E, enquanto manuseava tudo, vi-me na estranha e espontânea situação de repetirem
voz alta, sem me importar com quem passava na rua: “Você vai crescer forte e ficar linda!”.
Foi quando percebi que já amava aquela
árvore muito antes dela estar crescida, cheia de galhos, folhas e flores, como
em meus sonhos. Sei que é estranho falar de amor por algo que não seja um ser
humano, mas aquela quaresmeira me ensinou que o amor é algo muito maior que a imaginação
e se manifesta de dentro de nós abrangendo tudo que nos cerca, seja uma árvore,
um bem material, um sonho, um trabalho.
Certamente a imaginação cria, mas é o amor
que nos leva às atitudes que tornam nossos sonhos, pequenos ou grandes, realidade. Pois é o amor que direciona nosso trabalho, nossa persistência,
nossa superação, nosso aprendizado. Pois o amor é superação, é gratidão, é
regozijo com cada degrau alcançado. É o desfrutar da beleza da caminhada, sem
se importar como será a chegada ao final da jornada.
Hoje me indago sobre quantas boladas da vida
tomarei até entender, por inteiro, que sou como a quaresmeira e tudo que
preciso é do meu amor próprio para crescer, dar folhas e flores e espalhar
minha beleza ao mundo.
Quantas barreiras de pessimismo deixamos nos
cercar, conduzindo-nos por caminhos de medo e tristeza, que não nos levam a
lugar algum? Porque o pessimismo e o medo são ilusões. Ilusões aterradoras,
pois nos conduzem a crer que nada merecemos e que tudo é impossível, matando
nossos sonhos e capacidades antes mesmo que se manifestem, levando-nos à
frustração.
Sem querer, aquela pequena muda ensinou-me a
maior de todas as lições que tomei. E toda vez que saio de casa e fito minha
quaresmeira, crescendo imponente, sem se deixar esmorecer com as boladas que,
vez ou outra, ainda toma, tenho a prova viva, verde e pulsante, de que só o
amor verdadeiro basta para tudo em nossas vidas.
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