segunda-feira, 2 de abril de 2018

DELUDIDUS


Um pequeno projeto e ponto. Fez-se o homem. E com ele, a medida de todas as coisas nasceu, pois lhe deram muito mais que uma inteligência simplista. Concederam ao homem a capacidade de querer sempre mais, de conceituar, investigar, conquistar. Mas quando a medida de todas as coisas esbarrou em limites, então o homem inventou a ilusão, juntamente com uma ferramenta chamada photoshop.
Olhei-me no espelho, sentindo-me irritada. Toda mulher passa por isso, talvez pelo excesso de detalhismo que parece fazer parte do fator determinante do estrogênio. Sempre há algo em nosso corpo que detestamos, mas essa é a ideia que todas acalentam, pois na realidade, todas nós, ao menos a grande maioria, nos detestamos por completo. Umas implicam com as pernas, outras, com o nariz, cabelos, mãos, unhas e, no meu caso, a barriga.


Confesso sem nenhum pudor que odeio minha barriga. Nunca fomos boas amigas, pois desde que me conheço por gente, sempre a odiei. Com o tempo esse ódio tornou-se quase uma obsessão, regada a muitos exercícios, dietas mirabolantes, corridas estafantes, trabalhos psicológicos, conselhos sentimentais e até mesmo promessa para santos. Mas minha barriga, ou melhor, a gordura localizada, essa ingrata, nunca me deu uma trégua sequer e cada vez que me olho ao espelho ela parece galhofar de mim e de todos os meus esforços.
Ser mulher é sentir-se deslocada para sempre dentro de um corpo em eterna mutação. Ser lésbica é ser uma deslocada dentro de um corpo em mutação e dentro de uma sociedade que a trata como minoria. Pior de tudo é que dentro dessa suposta minoria, você se sente deslocada por não querer ser parte de uma minoria, que acredita que corpo perfeito e uma vida social repleto de bares e boates gay seria um arremedo de paraíso artificial. Mas quando se tem problemas com o próprio corpo, não importa se é mulher, homem, gay, hétero ou assexuado, você sempre se tratará como um deslocado.
Você se sente deslocada quando olha a televisão; se sente humilhada quando passa pelas bancas de jornais e se depara com as capas de revistas. Nenhuma roupa é suficiente para fazê-la bonita; nenhum adorno, nenhuma palavra, nada tira da sua cabeça que as pessoas estão mirando-a porque você não tem um corpo bonito. Você se sente uma excluída, sem lugar algum que possa descansar.
E assim, após a invenção da ilusão e do photoshop, o homem criou uma nova espécie de ser humano: homo deludidus. Toda a tecnologia que criamos para entreter e melhorar nossas vidas volta-se contra nós, numa espécie de revolução inconsciente das máquinas, fazendo-nos acreditar que somos menos, trancando-nos a cadeados chamados minorias, tornando-nos frágeis, pequenos, superáveis e dependentes, em outras palavras, deludidos.
É difícil escapar dessa tempestade. Rapazes saem rumo às baladas atrás de garotas de revista, sem celulite, com peitos, bunda e coxas perfeitas; mulheres buscam um príncipe encantado, musculoso, num carro importado e com um cartaz na testa com a pergunta “quer casar comigo?”. Na ala gay, então, poucos se entendem. Seguem os mesmos padrões dos héteros, mas de um modo obviamente inverso. Por aí vemos que a delusão não deixa o amor nascer.
Sempre há “senões” ou “poréns” no meio do caminho. Às vezes a opinião da “galera” sempre conta, muito mais que o próprio sentir. Mas nem o sentir é genuíno. Nós simplesmente não conseguimos enxergar mais o que sentimos e quando nos deparamos com nossos reais anseios, renegamos a eles o direito de se manifestar, por medo da represália dessa ditadura da delusão.
Mas quando caminhamos pelas ruas ou conversamos entre si, chegamos à terrífica conclusão que todos estamos preocupados com nossas roupas, com nossas barrigas, com nossa imagem socialmente construída, com a aprovação social. Nosso sentir, nosso verdadeiro ser, está abafado, em algum canto escuro, amordaçado, mutilado, tentando sair.
É então aqui que chegamos ao estado mais cataclísmico da delusão. Projetar ao mundo uma imagem diferente do que realmente somos, por acreditarmos que essa espécie de fantasia é a perfeição desejada. Uns ostentam comportamentos moralistas; outros se entregam a bisturis. Criam padrões de comportamentos ou de beleza completamente intransponíveis, impactando nosso mental coletivo e criando uma geração de pessoas que odeiam a si mesmas e ao próprio corpo.
Olho para minha barriga e indago-me: ela seria realmente minha inimiga se eu não acreditasse que ter um corpo perfeito é o único atributo para ser bem sucedido em um relacionamento? Respiro fundo diante da ironia dessa pergunta. Como uma mentira tão grande, pode ditar nossos comportamentos, sem que percebamos? Como aprender a amar numa sociedade em que as máscaras são mais valorizadas que a própria essência humana?
Nesses momentos únicos percebo que jamais serei a melhor versão de mim mesma, pois esse projeto de ser humano não existe. Torno-me uma espécie de desinvenção humana, quando penso que deveria ser melhor do que sou, pois acabo por renegar o que há de bom em mim. Visto uma roupa que é socialmente aceita, mas que detesto; brindo tudo e a todos com meu bom humor característico, mesmo detestando a maioria em meu íntimo; tomo bebidas de marcas socialmente aceitas; penteio meu cabelo de um modo socialmente elegante.
Onde há espaço para mim em meio a tantos outros? Quem seria eu, se o fardo pesado das delusões sociais não estivesse preso a mim como correntes? Eu, de fato, seria simplesmente eu. Não haveria pressões para ser nada além de mim. Talvez voltasse a ser uma inocente criança ou, então, o mais óbvio: me tornaria um deus.
G. P. Silva Rumin

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