Um pequeno projeto e ponto. Fez-se o homem.
E com ele, a medida de todas as coisas nasceu, pois lhe deram muito mais que
uma inteligência simplista. Concederam ao homem a capacidade de querer sempre
mais, de conceituar, investigar, conquistar. Mas quando a medida de todas as
coisas esbarrou em limites, então o homem inventou a ilusão, juntamente com uma
ferramenta chamada photoshop.
Olhei-me no espelho, sentindo-me irritada.
Toda mulher passa por isso, talvez pelo excesso de detalhismo que parece fazer
parte do fator determinante do estrogênio. Sempre há algo em nosso corpo que
detestamos, mas essa é a ideia que todas acalentam, pois na realidade, todas
nós, ao menos a grande maioria, nos detestamos por completo. Umas implicam com
as pernas, outras, com o nariz, cabelos, mãos, unhas e, no meu caso, a barriga.
Confesso sem nenhum pudor que odeio minha
barriga. Nunca fomos boas amigas, pois desde que me conheço por gente, sempre a
odiei. Com o tempo esse ódio tornou-se quase uma obsessão, regada a muitos
exercícios, dietas mirabolantes, corridas estafantes, trabalhos psicológicos,
conselhos sentimentais e até mesmo promessa para santos. Mas minha barriga, ou
melhor, a gordura localizada, essa ingrata, nunca me deu uma trégua sequer e
cada vez que me olho ao espelho ela parece galhofar de mim e de todos os meus
esforços.
Ser mulher é sentir-se deslocada para
sempre dentro de um corpo em eterna mutação. Ser lésbica é ser uma deslocada
dentro de um corpo em mutação e dentro de uma sociedade que a trata como
minoria. Pior de tudo é que dentro dessa suposta minoria, você se sente
deslocada por não querer ser parte de uma minoria, que acredita que corpo
perfeito e uma vida social repleto de bares e boates gay seria um arremedo de
paraíso artificial. Mas quando se tem problemas com o próprio corpo, não
importa se é mulher, homem, gay, hétero ou assexuado, você sempre se tratará
como um deslocado.
Você se sente deslocada quando olha a
televisão; se sente humilhada quando passa pelas bancas de jornais e se depara
com as capas de revistas. Nenhuma roupa é suficiente para fazê-la bonita;
nenhum adorno, nenhuma palavra, nada tira da sua cabeça que as pessoas estão
mirando-a porque você não tem um corpo bonito. Você se sente uma excluída, sem
lugar algum que possa descansar.
E assim, após a invenção da ilusão e do photoshop, o homem criou uma nova
espécie de ser humano: homo deludidus.
Toda a tecnologia que criamos para entreter e melhorar nossas vidas volta-se
contra nós, numa espécie de revolução inconsciente das máquinas, fazendo-nos
acreditar que somos menos, trancando-nos a cadeados chamados minorias, tornando-nos
frágeis, pequenos, superáveis e dependentes, em outras palavras, deludidos.
É difícil escapar dessa tempestade. Rapazes
saem rumo às baladas atrás de garotas de revista, sem celulite, com peitos,
bunda e coxas perfeitas; mulheres buscam um príncipe encantado, musculoso, num
carro importado e com um cartaz na testa com a pergunta “quer casar comigo?”.
Na ala gay, então, poucos se entendem. Seguem os mesmos padrões dos héteros,
mas de um modo obviamente inverso. Por aí vemos que a delusão não deixa o amor
nascer.
Sempre há “senões” ou “poréns” no meio do
caminho. Às vezes a opinião da “galera” sempre conta, muito mais que o próprio
sentir. Mas nem o sentir é genuíno. Nós simplesmente não conseguimos enxergar
mais o que sentimos e quando nos deparamos com nossos reais anseios, renegamos
a eles o direito de se manifestar, por medo da represália dessa ditadura da
delusão.
Mas quando caminhamos pelas ruas ou
conversamos entre si, chegamos à terrífica conclusão que todos estamos
preocupados com nossas roupas, com nossas barrigas, com nossa imagem
socialmente construída, com a aprovação social. Nosso sentir, nosso verdadeiro
ser, está abafado, em algum canto escuro, amordaçado, mutilado, tentando sair.
É então aqui que chegamos ao estado mais
cataclísmico da delusão. Projetar ao mundo uma imagem diferente do que
realmente somos, por acreditarmos que essa espécie de fantasia é a perfeição
desejada. Uns ostentam comportamentos moralistas; outros se entregam a
bisturis. Criam padrões de comportamentos ou de beleza completamente
intransponíveis, impactando nosso mental coletivo e criando uma geração de
pessoas que odeiam a si mesmas e ao próprio corpo.
Olho para minha barriga e indago-me: ela
seria realmente minha inimiga se eu não acreditasse que ter um corpo perfeito é
o único atributo para ser bem sucedido em um relacionamento? Respiro fundo
diante da ironia dessa pergunta. Como uma mentira tão grande, pode ditar nossos
comportamentos, sem que percebamos? Como aprender a amar numa sociedade em que
as máscaras são mais valorizadas que a própria essência humana?
Nesses momentos únicos percebo que jamais
serei a melhor versão de mim mesma, pois esse projeto de ser humano não existe.
Torno-me uma espécie de desinvenção humana, quando penso que deveria ser melhor
do que sou, pois acabo por renegar o que há de bom em mim. Visto uma roupa que
é socialmente aceita, mas que detesto; brindo tudo e a todos com meu bom humor
característico, mesmo detestando a maioria em meu íntimo; tomo bebidas de
marcas socialmente aceitas; penteio meu cabelo de um modo socialmente elegante.
Onde há espaço para mim em meio a tantos
outros? Quem seria eu, se o fardo pesado das delusões sociais não estivesse
preso a mim como correntes? Eu, de fato, seria simplesmente eu. Não haveria
pressões para ser nada além de mim. Talvez voltasse a ser uma inocente criança
ou, então, o mais óbvio: me tornaria um deus.
G. P. Silva Rumin
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